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justiça restaurativa e filosofia prática -a experiência

Em junho de 2019 realizamos nosso primeiro curso de Introdução em Justiça Restaurativa e Filosofia Prática, pela Conatus, à partir da aliança entre os princípios fundamentais da Justiça Restaurativa e os conceitos filosóficos desenvolvidos pelo filósofo Bento de Espinosa e outros pensadores que trabalharam e ainda trabalham a partir desses conceitos: Deleuze, Guattari, Nietzsche, Antonio Negri, entre outros.


Aparentemente, entrar em tantos conceitos poderia deixar o curso com demasiada densidade, afastando interessados no tema, que muitas vezes não se autorizam a trabalhar com a Filosofia, alegando falta de conhecimento. Pois é especificamente o lugar do especialista que pretendemos abdicar, afinal pra que serve a Filosofia? Quem pode filosofar? Quem está autorizado e quem autoriza?


Abordar os princípios e os conceitos da Justiça Restaurativa é sem dúvida adentrar conceitos filosóficos que há muito tempo vêm sendo construídos e vivenciados pelos agrupamentos humanos.” Violência”, ”Justiça”, “direito”, “vítima", são conceitos que estão sendo construídos o tempo todo e há muito tempo. Não é necessariamente a filosofia ocidental iniciada na Grécia Antiga que legitima o pensamento filosófico, por onde o ser humano viveu dotado da capacidade do pensamento, houve filosofia, houve indagação sobre a origem e o fim da vida, houve devoção ao mistério da criação, houve fé.


É no autor Bento de Espinosa que encontramos um modo do filosofar que nos provoca a aproximação de alguns conceitos filosóficos da Justiça Restaurativa. Espinosa, filósofo holandês de origem portuguesa, expulso da sinagoga por afirmar que Deus não era transcendente, mas imanente, o todo de uma natureza do qual fazemos parte, talvez tenha inaugurado - após o advento da tipografia - uma maneira de compor e desencadear o próprio pensamento, em que se utiliza do modo de pensar matemático já instaurado por Descartes e tantos outros antes deles. Num período onde era preciso provar cada teoria, com fórmulas e sentenças matemáticas, Espinosa o faz de maneira genial, instaurando um conceito de razão oposta a de Descartes (e até mesmo de Kant), como algo que não se atinge, mas ao contrário, se exerce na busca pelo conhecimento adequado das coisas. E o que seria esse conhecimento adequado? Espinosa, ao criar o conceito de Deus como Natureza Naturante, que envolve todas as coisas e por isso é causa de si mesmo, faz isso através da matemática e nos permite criar a figura geométrica do fractal, onde cada padrão geométrico se repete infinitamente, independentemente da escala. A imagem do universo cheio de estrelas e planetas é a mesma do microscópio de nossas células e neurônios. A matemática é a regra do desencadeamento. Se eu lanço uma caneta ao chão, a composição do meu corpo e dos movimentos que ele pode, com o corpo da caneta e tudo que ela pode, misturados com o meio que nos envolve, cheio de ar e de gravidade, certamente desencadeará que a caneta caia no chão. Nesse sentido não há bem e mal, mas encontros, desencadeamentos de infinitas naturezas, que podem compor ou decompor com a minha natureza, já que as coisas só são boas ou más em relação e a cada encontro minha potência de existir pode diminuir ou aumentar, cada efeito de um encontro pode produzir alegria ou tristeza. Nessa linha de pensamento podemos entender que nunca é o outro que me faz mal, mas o resultado do nosso encontro diminui a minha potência e entristeço.


Espinosa irá então aplicar esse pensamento à natureza dos afetos, pois tudo o que nos acontece, é fruto de encontro, é desencadear de relações. Se pensarmos que a Justiça tem como matéria-prima o encontro e que a Justiça Restaurativa tem como matéria-prima o encontro e todas as partes que o compõe e o meio onde acontece, facilmente podemos nos apropriar do pensamento de Espinosa para um trabalho afirmativo. Afirmativo da vida. Fazendo um paralelo com a queda da caneta, em um caso de violência, o que seria a gravidade e o ar? Qual seria esse meio? Não é possível fazer Justiça Restaurativa sem levar em conta o meio para além das partes. Faremos então a pergunta sobre o que compõe a nossa subjetividade quando estamos no encontro? Que subjetividade é essa? O que afirmamos ser violência, justiça, vingança, perdão? Como são construídos esses conceitos que hoje temos tão introjetados, a ponto de chamarmos de consciência?


Parece reducionista falarmos de Espinosa assim quando nos aproximamos de seu texto rebuscado que percorre todo o seu livro Ética, mas com um pouco de insistência, conseguimos entender que a Filosofia de Espinosa é um convite, um livro que sempre está se movendo, para que a cada encontro possamos observar nosso corpo no mundo de outra maneira. Espinosa nos convida para a Filosofia Prática - nome que o filósofo francês Gilles Deleuze dá a seu livro publicado em 1970 sobre o filósofo holandês - pensar como ato, ser como corpo e viver em busca dos bons encontros que aumentam nossa potência.


Iniciamos a formação fazendo essas provocações, mas acima de tudo, propondo uma investigação sobre o que aumenta e o que diminui nossa potência, um convite à prática do pensamento. Fizemos do encontro algo intencional, convidamos os participantes a uma viagem do pensamento livre, tentando não fazer julgamentos no compartilhar de histórias em um espaço seguro onde pudemos ser vítimas e ofensores sem nos tornarmos bons ou maus. Ser uma vítima não me torna uma boa pessoa, ser um agressor não me torna uma pessoa má. Ao chegarmos nesse pensamento estamos a um passo do que a Justiça Restaurativa propõe, que é antes de tudo um encontro que nos permite desconstruir personagens imaginados e produzir em um novo encontro, ideias adequadas sobre si, sobre o outro e sobre o meio.


Essa produção de pensamento não se alcança, é algo que se dá em todos nós, é preciso descortinar muitas camadas de construções conceituais que a história produziu para chegarmos à natureza humana. Para fazer Justiça Restaurativa é preciso estar aliado à natureza humana. Nada é bom ou mau por si só, mas o encontro nos afeta de maneiras diferentes, e como saber dessas maneiras, se não abrindo caminho para que a natureza exista? É preciso saber que tudo está dentro das capacidades e ferramentas que o ser humano tem em sua natureza naturada para viver, nada é desumano a ponto de não ter sido praticado por um próprio ser humano. Aquilo que é mal cheiroso e me provoca um mau encontro, através do meu olfato, não é necessariamente algo mau, mas algo que pertence à natureza tanto quanto eu. Não posso me basear no efeito do encontro em mim para classificar os outros corpos, pois seria uma ideia bastante inadequada sobre o que é de fato o outro.


Os conflitos entre os seres humanos estão presentes desde sempre. Muitos acabaram em grandes transformações históricas, ou fizeram parte de processos, pois a lei do desencadeamento não cessa. Talvez pudéssemos não tentar apagar o conflito, nem necessariamente reparar algo quebrado, mas nos apossarmos dos efeitos do conflito, pensando sobre o que ele nos causa, e perguntando o que eu faço do que me acontece?

Durante o curso de Introdução em Justiça Restaurativa e Filosofia Prática pudemos experimentar maneiras diversas de enxergar os conflitos, partindo sempre das histórias das pessoas que participam, onde o dispositivo do grupo ganha tonalidade e cria um lugar seguro para o compartilhar da natureza humana, olhando para a diferença que nos compõem num mesmo meio e para as semelhanças que nos atravessam como uma possibilidade de ouvir outras narrativas. Aprendemos a ouvir como um gesto, como uma ação, ouvir com a presença de quem se interessa pela natureza do outro, porque afinal se interessa por sua própria. Criamos juntos a possibilidade de estarmos nos encontros de maneira diferente, sem nunca esquecer de que essa produção é cotidiana, o pensamento é veloz, precisamos nos apropriar dele de maneira inteligente e produzirmos cada vez mais encontros que aumentem a nossa potência. Espinosa nos ensina que a única maneira de diminuir a tristeza causada por um mau é encontro é produzindo um afeto de alegria.

Por ser um curso de introdução, acreditamos ter conseguido produzir uma aproximação bastante consistente dos conceitos da Justiça Restaurativa aos participantes, assim como daquilo que chamamos de Filosofia Prática, termo que se refere ao pensamento do filósofo Bento de Espinosa. Para além do contato com a matéria da Justiça Restaurativa e sua possível prática ou aplicabilidade, acreditamos que esse curso conseguiu produzir também, através do encontro, um choque para a produção de pensamento da vida, que como toda questão filosófica, está ligada a nós de maneira direta, que está nos nossos encontros mais banais, mas cotidianos. Para além da formação esse curso é sem dúvida um convite à presença e um exercício de viver em ato.


Essa experiência também foi assim para nós. O trabalho em grupo é bastante fortalecedor porque além de contarmos nossas próprias histórias, podemos ouvir as histórias dos outros com real interesse, ampliando nosso olhar para as coisas, deixando que uma outra história exista em nós, de modo tão singular. A cada história, aumentamos um pouco nossos corpos, em cada história um alimento, uma digestão e um corpo que se abre. Sabemos também da importância da nossas histórias para os outros e a cada aumento de potência que assistimos - mesmo que para isso tenhamos que passar por momentos de tristeza - nós aumentamos de tamanho. Nos sentimos grandes!

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