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Entre, a Sala está Aberta

Quando acontece? Quartas, às 20hs, a cada 15 dias.


2024 - início dia 20/03


Abril - 03, 17 
Maio - 08, 22
Junho - 05 e 19

O que é a Sala Aberta?

 

A Sala Aberta como prática começou em 2020, no início da pandemia. O convite lançado foi para a experimentação de nós mesmos e para sentir a força da vida que nos atravessa, apesar de nós, e que tem como direção preservar-se em nós, fazer morada. Daí veio a ideia de mantermos uma SALA ABERTA, nossa própria sala de casa como local de encontro online, de partilhas do agora, mesmo que distantes, buscando uma maneira de não intimizar a vida, mas pô-la pra fora ativa e intencionalmente. 

São conversas na órbita da Filosofia Prática e nos modos de construção do justo. Refletir juntos sobre estarmos no mundo, investindo no pensamento crítico e criativo, na MULTIPLICAÇÃO dos pontos de vista, na DESCENTRALIZAÇÃO do conhecimento, colocando-nos como aprendizes da criação de outros modos de existir, como co-criadores do real.

 

Desintimizar a vida.

 

O pano de fundo que norteia a era da individualidade produz também um sentido para o pensamento em direção aos valores historicamente construídos de  culpa e responsabilidade, onde cada um é responsável então por tudo o que lhe acontece, das maiores vitórias, aos maiores fracassos, alternando-se entre o merecimento e a falta de vontade. 

Nesse sentido, este pano de fundo também infiltrou-se na produção durante muito tempo do que podemos chamar de estudos da consciência humana e assim, construir a ideia de seu oposto, o inconsciente, como “um ser”, ou um mecanismo próprio que deixa escapar a verdade sobre mim, da qual eu mesmo não tenho acesso. Assim, foi se construindo o especialista nas produções do consciente e do inconsciente, criando um valor científico para aquele que possui as chaves e respostas sobre o modo de viver correto, assim como nas religiões fazem os sacerdotes.

Desintimizar a vida então, passa a ser um gesto de rebeldia onde os valores da individualidade e do bem privado prevalecem nos campos sociais e institucionais. Faz parte então do processo de desintimizar a vida, que não haja “especialistas” que ofereçam conselhos, sermões ou receitas. O processo de desintimização da vida se dá portanto de maneira oral e gestual, seja compartilhando silêncios, traumas ou alegrias, seja oferecendo uma escuta atenta não porque o outro precisa, mas porque desejo verdadeiramente ouvir a experiência do outro, e parece que quanto mais ela se diferencia da minha, mais eu posso expandir, porque posso habitar outros corpos em outras histórias. Isso acontece portanto “entre” as presenças, as falas, os olhares, as interações e é isso o que produz os laços, que diferentes de nós, podem facilmente se desfazer e refazer. O ‘entre nós’ se faz na artesania de invisíveis e é nesse espaço que se faz o convite de cuidar de si na presença do outro, nesses vínculos que nos transpassam e que são finuras. Deslizamos na intimidade pública, desintimizamos a vida, colocamos-a para fora. Sustentamos gestos, suportamos o silêncio cheio de nada. 

 

A ideia de ajudar o outro 

 

Normalmente quando nos deparamos com um próximo a nós em sofrimento, nos colocamos na intenção genuína de ajudar. Mas, é preciso lembrar que não há exclusividade no sofrimento. 

Foi usando a intenção de “ajudar o outro” que a tutela foi  sendo construída institucionalmente. Assim o pai que bate porque educa, o professor reprova para que o aluno aprenda, o psiquiatra medica os que não sabem conviver e as prisões regem a vida ordinária de milhares de pessoas. A tutela garante um “controle” social que investe sempre contra a autonomia do outro, que invalida suas saídas, que bloqueia todas as entradas.

O cuidado tutelar torna o outro fraco, carente de cuidado, marcado pela falta em uma busca desesperada por preenchimento de vazios, movido pelo insaciável, pelo ‘ensimesmamento’ em que o ato de viver tem sua marca na angústia, necessitando de cuidado e de tutela. Aqui aparece talvez aquela metamorfose possível narrada por Kafka em que o personagem transforma-se em inseto num quarto abafado, com asas de mosca que não podem se movimentar. Na obra de Kafka apresenta-se a metamorfose desvitalizada, a que se efetua quando o ato de viver expressa-se sufocadamente em pesada e burocrática convivência com o mundo.

Assim, o trabalho de criar espaços para promover encontros é em si o próprio empreendimento, não com o intuito de ajudar o outro, mas ao contrário, de investir nos laços comuns como modos de nos cuidarmos. Não há cuidado individual, mas cada um cuida de si no encontro com o outro. Abrir esse espaço e sustentá-lo com regularidade, seja com uma, duas ou quinze pessoas, é então a força necessária para abrir uma cratera no concreto que não nos deixa respirar.

A ideia central do cuidado como estratégia política é de que não posso carregar a dor do outro e saber disso pode permitir estar presente COM o outro, diante de sua história e da sua dor. 


A forma circular e o facilitador

 

Um espaço aberto é um espaço seguro para “correr riscos”. É o lugar onde as vulnerabilidades que nos compõem da medula até os ossos podem aparecer e serem acolhidas e valorizadas.

É nesse espaço que detectamos cumplicidades e firmamos parcerias em torno da vida, acessando os medos juntos. Fazemos composições alegres das intenções e sonhos em torno da mudança e da própria impermanência da vida. Mapeamos o corpo e mapeamos o desejo: onde estão as linhas de fluxo? Onde estão as linhas de represamento (má-água) das forças inventivas? 

Ultrapassamos os processos de julgamento: um trabalho circular não é moralizante. É preciso ir até onde o desejo está e o julgamento pode ser usado como deslocamento assistido, ou seja, matéria prima do próprio movimento, do conhecimento de si, do que sentimos, nossos afetos, passagens para um ‘algo a mais’, um ‘algo a menos’, variações de potência que nos contam sobre nós, sabendo que nunca estaremos com tudo em ordem. 

Como então raspamos as linhas duras, rígidas, autoritárias e fazemos outro uso daquilo que nos acontece? Como é possível fazer bom uso dos maus encontros? É preciso escapar do regime de relação endividada com a vida, credor-devedor, senhor-escravo. Como produzir para si um “corpo sem órgãos”?! - buscar por uma ética da vida de cooperação real com o outro. É pensar a autonomia como interdependência. “Eu sou, porque nós somos” - como diz a filosofia Ubuntu. 

Num círculo tudo é um convite. Não existe um ponto de vista objetivo e isto é completamente diferente de tudo que forma nossas estruturas e define instituições. Saímos do binômio certo e/ou errado, para além de bem e mal. O encontro possibilita um diálogo interno, a auto-reflexão, isso que acontece a maior parte do tempo dentro de nós.

Num círculo não há neutralidade - isto é um conceito ocidental (colonial) que pressupõe um ponto de vista objetivo. Num círculo isso não funciona pois tudo está interconectado, cada um tem seu próprio potencial. Em um círculo o facilitador não fica neutro, pois está em uma relação de cuidado e não faz isso de um lugar independente, mas como um participante igual no círculo. Despido de qualquer presumido. 

Assim, a escuta é o outro lado da voz e a autenticidade o lugar pŕoprio. O facilitador faz parte coletivamente da criação de possibilidades para a transformação, sem carregar a dor do outro ou acreditar que individualmente pode achar soluções. Não está para consertar nada pelo grupo e não controla as questões levantadas pelo mesmo, nem tenta levar o grupo a um resultado particular. 

 

Saúde Mental e subjetividade

 

Há quem diga que o psicólogo é a profissão do futuro, pois estaremos no auge da tecnologia produzida pelo ser humano, com grandes transformações no mundo do trabalho, mas sem estruturas emocionais e psíquicas para nos relacionarmos, ou para lidarmos com o que sentimos. Talvez esse dia já tenha chegado. 

Hoje, no Brasil a cada hora, em média, 5.144 caixas de remédios são vendidas nas farmácias e drogarias, um total de 123,5 mil caixas por dia. Um levantamento da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) mostra que entre 1° de janeiro de 2014 e 31 de dezembro de 2021 o Brasil comprou 345,5 mil caixas dos ansiolíticos mais vendidos: Frontal, Lexotan, Rivotril, Valium e Lorax.

A pandemia aumentou esse número em 17 %, mas a escalada crescente é anterior a este período. Em seis anos, houve um salto de 74% no número de antidepressivos Foram 35.453 unidades em 2010 contra 61.859 em 2016. 

Será que algum dia nos perguntaremos se a medicação psiquiátrica, prescrita desta maneira, é de fato eficiente? Acontece que a indústria farmacêutica anda de mãos dadas com a validação de diagnósticos. Enquanto isso na Suécia, uma pesquisa revelou que os medicamentos para ansiedade tomados pelos cidadãos europeus têm sido despejados em rios, afetando a fauna local. Os pesquisadores analisaram o efeito de um medicamento comum, o Oxazepan, sobre uma espécie específica de peixe, a Perca Fluviatilis. Os resultados indicaram não apenas a presença desses ansiolíticos nos rios da Suécia, como também o fato de que as Percas daquela região estão comendo mais rapidamente, se tornaram mais destemidas e passaram a se comportar de maneira menos social, chegando a abandonar grupos e a viver sozinhas.

Esses dados nos revelam que é preciso confrontar a ideia de saúde que vem sendo produzida e por isso a psicologia deve ser uma ferramenta de transformação social e não de conformação social. Medicamos para quê? Aliviar o sofrimento ou produzirmos corpos em constante produtividade?

A proposta de uma psicologia política, ética e estética, sob o aspecto da humanidade compartilhada, habilita então, aqueles pertencentes ao comum criado, a inventarem suas próprias soluções de modos de viver, confrontando não apenas o saber médico, mas colocando a instituição “psi” em processo de desnaturalização. 

O sistema capitalístico é ele próprio uma máquina de criação de traumas e diante das histórias de cada um, podemos juntos vislumbrar a potência do trauma quando nos perguntamos: mas o que fazemos com isso que aconteceu? E contra a máquina capital, inventamos a máquina de guerra da criação de redes, de saberes conectados. Contra o individualismo, nos juntamos para  criar o comum e estabelecemos as parcerias como meio de não adoecer. COMO CONSTRUIR PARA SI UM CORPO DE LUTA?

A proposta é pensar a psicoterapia como arte. Quando nos perguntamos “o que aconteceu?” “Como foi?” - realizamos uma busca pelo ‘acontecido’ como versão. Nesse momento, tem um ‘eu’ que se atualiza. Na Sala aberta, diante da possibilidade de compartilhar uma história vivida, há um investimento em atualizações microscópicas. Há as armadilhas, os  “tropeços da memória”, o ressentimento e o trauma -  a repetição prodigiosa da memória, atribuindo aos outros a causa de seus sofrimentos. E por não encontrar sentido no sofrimento, é preciso então tirar prazer da dor. É aí que aparece um mecanismo viciante de alívio, sentir culpa. 

Qual seria então a expressão da dor? Qual seria seu canal de passagem? Em um encontro circular de construção de comunidade, o próprio encontro assiste o grupo na criação e manutenção de um espaço coletivo, no qual cada participante sente-se suficientemente seguro para falar de maneira honesta e aberta sem desrespeitar ninguém. 

Se escutar é o outro lado da voz, o corpo irmanado à voz é o sopro que pode elevar o instante acima de si. Como num gesto propulsor, num impulso, um projétil se faz e uma voz capaz de incorporar outros corpos acontece. E é na forma circular que o efeito do estranhamento se faz: extra,  o de fora, aquilo que não pertence à. Estranhamento é singularizar e  desfamiliarizar, é estar de fora para ver a coisa como pela primeira vez.  É o olhar de espanto, o olhar inaugural de um novo passado.  

A expressão então acontece como uma roda de contação de histórias, griôs reunidos, cada um com a autoridade de sua própria história. É da ordem do revolucionário ter voz própria, pois é a força da fragilidade  que não serve às estruturas.

O acontecimento da conversa é diferente da conversa sobre o acontecimento. Ela mesma é o acontecimento e adquire força e intensidade de algo que nos conta e promove um corte, tem um antes e um depois. Já a conversa do acontecimento é o evento que nos aconteceu, o “acontecido”, que nos fixa e nos torna reféns daquilo que nos paralisa. 

Assim, a expressão da dor passa pelo campo da autoria - autoridade sobre a própria história como campo de batalha entre a voz criativa e outras vozes padronizadas que se incorporam, que se espremem e que a todo o tempo constrangem a minha voz. É fazer da própria vergonha a força para superá-la.

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