Desde que comecei a me perguntar sobre o que era Justiça, posso dizer que até hoje não havia conseguido chegar a uma definição que me satisfizesse. Quem pode afirmar com consistência o que é Justiça? Muitas serão as maneiras de definir esse conceito tão difícil de ser aprisionado, muitas serão as tentativas de tomar um lado conceitual, ora trazendo a igualdade como constituinte, ora tentando inventar o direito como algo a ser disputado e/ou conquistado. Afinal, o que é de direito aos homens? Quem concedeu esse direito? Desde a infância sempre me incomodei com aquilo que achava injusto, mas não me preocupava com o que seria Justiça. Seria então possível, definir a Justiça a partir da injustiça?
A verdade é que a história conceitual do termo Justiça se construiu sob o pilar do conhecimento ocidental, e a Justiça tem sido um conceito abstrato, que parte de um possível equilíbrio social, ou como regulador desse equilíbrio, uma busca incessante pelo estado ideal de interação social que possa ser mediado pela imparcialidade entre as diferenças. Um conceito abstrato que atravessa toda a filosofia, a ética, a moral, o direito e as religiões.
Na Grécia, a justiça era representada de olhos abertos, enquanto que em Roma ela foi representada por uma estátua de olhos vendados, afinal, todos seriam iguais perante a lei, e todos tendo direitos iguais, a tão sonhada igualdade poderia estar segura. O catolicismo traz junto com a promessa de céu ou a ameaça do inferno, a vontade de dar aos outros o que lhe é devido. A história da apropriação do solo traz consigo um conceito fundamental na formação do que consideramos ser a execução da justiça, que é meu direito ter como limite o direito do outro. Os filósofos Hobbes, Lock e Rousseau desenvolvem seus tratados sobre a criação do Estado, a partir da propriedade privada, sendo ele o responsável por regular o convívio dos homens de posses com os homens sem posses. Nenhuma dessas explicações me foi suficiente nessa busca sobre o que seria mesmo a Justiça.
Quando conheci de perto o sistema criminal brasileiro, o sentido do que seria Justiça começou a ficar cada vez mais longe. Falar de sistema de Justiça no Brasil é falar da execução de uma cartilha de direitos ora cumpridos, ora subvertidos, pelos cidadãos, pelos funcionários públicos (incluindo a classe política), pelos magistrados, procuradores, policiais, enfim, por todas as pessoas. Quando essa subversão às leis estabelecidas é desvendada, ou supostamente cometida, todo o aparato da Justiça se põe a trabalhar.
Nesse caso, sabemos quem é que está sendo punido e por isso adentramos o campo da justiça social. Falar de justiça social sem falar de racismo e sexismo, sem falar de condições mínimas de desenvolvimento da vida humana para suas máximas potencialidades, seria perda de tempo. As políticas de Estado para promover a justiça social tentam equilibrar o acesso ao que é justo pela Constituição, mas a máxima de meu direito ir até o direito do outro não é quebrada. Nesse sentido, construir um seio social sem desigualdades para que essa Justiça possa operar é algo inalcançável e a justiça permanece sendo falha para alguns.
Quando me aproximei da filosofia de Bento de Espinosa, vi que o que ele estava propondo era um olhar para as capacidades da natureza humana de maneira ilimitada e limitada ao mesmo tempo. O corpo humano ao mesmo tempo que possui limites de extensão e força previsíveis, é capaz de tantas outras das quais ainda não conseguimos mapear. A pergunta essencial de Espinosa, "o que pode um corpo?" É na verdade uma ampliação infinita dessas capacidades. E nesse sentido, o corpo de Espinosa é onde vive a mente, da qual através do pensamento é capaz de produzir incontáveis realidades. O pensamento então seria infinito? O que pode um pensamento? Ou então, como aprisionar um pensamento? Como produzir um pensamento justo?
No livro Tratado Político, Espinosa diz que “o direito natural da natureza inteira e, consequentemente, de cada indivíduo, se estende até onde vai sua potência e, portanto, tudo o que um homem faz segundo as leis de sua própria natureza, ele o faz em virtude de um direito soberano da natureza, e ele tem tanto direito sobre a natureza quanto tem de potência". (Espinosa, Tratado Político, cap. II, parágrafos 3 e 4).
Espinosa é o filósofo dos afetos, e por isso, das relações, tudo é produzido em relação, tudo está em movimento e o que define um corpo é o seu movimento. Como produzir justiça entre corpos que podem de maneira diferente, entre corpos que se afetam de maneira distinta? O filósofo propõe que possamos investir na busca pelas ideias adequadas das coisas, das relações, dos afetos e dos efeitos desses encontros e afetos. Essa busca pela ideia adequada passa necessariamente pela busca da ideia da minha natureza, para entender a natureza dos encontros e passa também necessariamente pela natureza do outro em relação comigo.
Como produzimos nossos encontros? É verdade que estamos todos à sorte dos encontros, e é impossível controlar tudo o que a vida produz fora de nós e seus movimentos. Mas, que tipo de encontro queremos? Para uma vida que tudo pode, buscaremos potência e não felicidade. Descobrir o que pode meu corpo é produzir contentamento.
Como produzir justiça para encontros que já me afetaram? Hoje, me sinto mais perto do conceito da Justiça como um movimento, como algo que se dá no encontro, nas relações. Não congelar o movimento é tirá-lo da abstração e da imaterialidade. Aquilo que é justo para mim nem sempre caberá justamente para o outro e vice-versa, de maneira infinita nas relações. Modos de construção do justo, maneiras de fazer, jeitos de estar no mundo, criação de mundo. Se Justiça é movimento, a lei que a regula é a lei da potência, das limitações infinitas, da inércia como movimento zero e do virtual como n-1. E ninguém ainda pôde inscrevê-las nem nas pedras nem nas consciências, porque aquilo que se movimenta todo o tempo jamais será capturado.
Heloisa Bonfanti
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