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Foto do escritorConatus - ética da vida

# Diário 05 - A Imersão


A pergunta essencial de Espinosa é: o que pode um corpo? Pergunta esta que nunca poderemos responder, afinal nunca saberemos de que maneira nosso corpo será afetado nos encontros.


Imergir pode significar que estamos nos afundando, mas também pode significar que estamos prestes a adentrar em algo profundo e fechado. A Imersão Justiça Restaurativa e Filosofia no Vale da Alegria tinha como proposta um mergulho rápido e profundo em temas que consideramos essenciais para a discussão teórica e prática de uma Justiça Restaurativa com potencial transformador urgente para que o barco não afunde. E para isso é necessário adentrarmos nos nossos corpos, nos nossos valores, crenças e modos de fazer e perceber.


E assim, esse mergulho interno se deu de maneira mais do que profunda, foi também vertiginoso e pôde dar passagem à submersão. Para sair do fundo do mar e respirar novamente oxigênio é preciso atravessar um oceano de densidades, de falta de força para subir, medo de perder o ar e vontade de desistir. Mas quando se trata da vida, desistir parece impossível, quase um absurdo.


Com a filosofia, principalmente de Espinosa e dos que por ele foram afetados e desdobraram, conseguimos atravessar a ideia de que somos a natureza, e que somos parte da geometria fractal do infinito, do Deus infinito de Espinosa, infinito pra dentro e infinito pra fora. Filosofia essa também praticada no mundo oriental, nos templos egípcios, nas comunidades celtas e nesse sentido a filosofia de Espinosa não seria nenhuma novidade, mas ele, como polidor de lentes que era, aumentou o grau de visão sobre os afetos humanos e as causas dos efeitos dos encontros, à partir do entendimento da Natureza.


Com o trabalho de corpo e respiração pudemos quase tocar com as mãos nossos órgãos internos, sentir o fluxo de ar que adentra o pulmão e tão rápido sai novamente, diferente, impossível de controlar. Entramos na corrente sanguínea e pudemos ver toda a natureza que estava ali fora de nós, nos atravessando impune, com suas substâncias ancestrais, com ferro, com gás carbônico, com enxofre. Pisamos na lama do rio, adentramos nossas águas profundas, acessamos o que sempre esteve ali, mas já não nos lembrávamos.


Todo este trabalho com o corpo nos dá também um nível de presença fundamental para o trabalho que realizamos, assim como é fundamental para o facilitador em justiça restaurativa, e por que não dizer de sua importância para qualquer momento, qualquer pessoa, pois é o exercício da presença que nos mantém distante da imaginação do futuro e do passado.


Assim, passamos então a percorrer os caminhos dos valores morais que durante milênios vem nos construindo e sendo construído por nós e molda nosso mais profundo modo de ser, de existir, de pensar e por que não, de sentir. É quando olhamos para esses valores construídos e suas histórias, que podemos nos dar conta de que a sociedade punitiva que construímos, longe de ser um problema exclusivo do Sistema de Justiça, é iniciada na primeira instituição que conhecemos, a família, nossa primeira experiência de castigo e punição.


A Justiça Restaurativa pensa em um modo de fazer que se distancia da punição e que é baseada no diálogo, no encontro entre os personagens da história para que eles possam decidir juntos o que é justo para si. Pensar na exclusão da punição para a educação é vertiginoso, pois nunca soubemos fazer de outra forma. Não queremos ser punidos, não gostamos de ver os outros sendo punidos, mas quando estamos diante de um poder e que alguém fez algo “errado”, nos é impossível muitas vezes pensar em outro modo, porque o exercício do poder nos dá também esta “responsabilidade”.


Mergulhamos nos nossos valores, o que é bom, o que é ruim, o que é certo e o que é errado. Questionar esses valores não é tarefa fácil pra ninguém, pois na maioria das vezes temos alguns valores que “não abrimos mão”. E por que? De onde eles vem?


Olhar para a construção dos nossos valores e crenças e perguntar de onde eles vieram, é de alguma maneira, uma forma de trazer à superfície os nossos conflitos internos. E a Justiça Restaurativa, que tem o conflito como matéria prima, não pode se ausentar de discutir os valores que compõem a subjetividade das pessoas envolvidas no conflito.


Com isso, conseguimos imergir um pouco mais e refletir sobre quais valores a Justiça Restaurativa se lança hoje no Brasil. A maioria dos países que tem a Justiça Restaurativa como ferramenta para lidar com os conflitos, têm uma desigualdade em sua base social bastante diferente da nossa realidade. No Brasil, a maior parte dos “agressores” têm uma classe social definida e se não pudermos olhar para onde esse “infrator” da lei foi forjado, à custa de muita violência institucional, não será possível ainda construir algo justo para os personagens da história.


E emergindo ainda um pouco mais, poderemos descobrir em qual local nos situamos na sujeição ou na reprodução de valores e que fazer justiça não pode ser mais uma questão de dar a cada um o que lhe é devido, mas de reconhecer que nessa imensidão da natureza, interna e externa, com milhares de encontros que aumentam e diminuem nossa potência de agir no mundo, estaremos em conflito necessariamente e a Justiça Restaurativa como uma filosofia prática, pretende cuidar dos seus efeitos e poder seguir a vida apesar do que aconteceu.


O processo de submergir traz à tona a nossa potência de agir no mundo, conceito esse que Espinosa nos empresta quando diz que o direito de toda natureza está onde sua potência alcança. Na Imersão no Vale da Alegria fomos muito fundo, mas também criamos uma força de maneira coletiva, com nossa comunidade provisória, para o aumento de potência e nos aproximarmos um pouco mais do que pode o nosso corpo.



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